A história é uma coisa. A história vivida, na primeira pessoa, é outra. Eu tenho a França atravessada. Guardo uma impressão muito nítida da rasteira que que Platini me pregou em 84 e guardei-lhe o rancor próprio da criança que era quando ele me desfeiteou. Nunca lhe perdoei e, já adulta, voltei a culpá-lo em 2000, pela mão do Abel Xavier. Eu sei que não faz sentido. Que venham. Não me interessam vinganças. Estou pronta para superar o trauma.
Eu culpo o Platini
Eu sei onde estava a 23 de junho de 1984. Foi o dia em que o Platini me fez mal. A véspera de S. João coincidia com um sábado e o dia todo foi de antecipação para a festa, que se sonhava dupla. Lembro-me de estar sentada com os homens da casa, a seguir um jogo longo, longo. Sofria-se muito com as alternâncias do marcador. Sei que um candeeiro foi cabeceado no festejo de um golo, não recordo se nosso ou deles. Nessa altura Portugal era o David diante do Golias. Eram os pequeninos, os saloios dos bigodes diante dos cosmopolitas franceses. Tinha uma enorme admiração pelo Bento, mesmo sendo do Benfica, era uma força da natureza e isso não tinha emblema. Nunca mais me esqueci da desilusão e sei que foi o Platini que a causou.
Pequenos gigantes
Agora os factos. Aquele duelo das meias-finais entre portugueses e franceses foi considerado por muitos o melhor jogo de sempre em Europeus. Vale o que vale mas foi entusiasmante e muito disputado. O antigo presidente da UEFA, agora caído em desgraça, pode ter sido o homem do França 84 mas o herói anónimo foi Jean-François Domergue. Foi o lateral esquerdo que abriu o marcador, a meio do primeiro tempo. Bento, o gigante Bento, fazia enorme defesa atrás de enorme defesa. Jordão faz a igualdade a quinze minutos dos noventa, com um cabeceamento certeiro, empurrando a decisão para prolongamento. O avançado do Sporting bisou e levou os portugueses à loucura, no início do tempo extra. Nené, que tinha rendido António Sousa já na segunda parte, teve nos pés a possibilidade de fazer o 3 a 0, mas falhou o remate isolado frente a Bats. Enlouquecido, Domergue não quis ficar atrás e voltou a empatar a eliminatória. É preciso relembrar que o defesa fez os únicos golos com a camisola francesa frente a Portugal, logo em dose dupla. Nunca mais o fez. No último minuto do prolongamento, quando já se esperava a marcação de grandes penalidades, Michel Platini foi cirúrgico a aproveitar um lance do grande Jean Tigana. A França ia à final. Portugal voltou para casa, com o orgulho intacto.
Abel e Caim
No Bélgica/ Holanda de 2000 a experiência foi também dramática. Em retrospetiva, Abel Xavier teve um gesto irrefletido e desviou a bola com a mão. Mas houve razões para todo o drama que se seguiu. Primeiro, estava a ser um jogo tão bom, com duas equipas de grande talento. Em segundo lugar, já tinha havido dúvidas quanto à posição de Anelka, na assistência para o golo com que Thierry Henry anulou a vantagem conseguida por Nuno Gomes. Havia a perceção generalizada de que a França estava a ser empurrada para a final. E depois toda a campanha de Portugal tinha sido galvanizadora, uma sucessão de embates épicos. Bateu a Inglaterra (3-2), depois de se apanhar a perder por dois aos vinte minutos. Goleou a Alemanha – aquele hat trick inesquecível do Sérgio Conceição – e nos quartos de final despachou a Turquia, com Baía a defender uma grande penalidade que podia ter complicado a dobradinha com que Nuno Gomes carimbou a passagem à meia-final. Voltando a esse jogo: inicialmente o árbitro faz a sinalética para se marcar o pontapé de canto. Só depois, a indicação do auxiliar, é que mudou a sua decisão.
Quando se ficou a saber que seria a França a adversária de Portugal na final de domingo, uma sombra pairou sobre o entusiasmo dos portugueses. Pelo menos daqueles que como ele sentiram a pontada da experiência. Mas, falo por mim, foi coisa passageira. Com a Alemanha teríamos uma batalha tática muito complicada de vencer, porque eles têm melhor conjunto. Com a França temos melhores hipóteses. Estou pronta para enfrentar esse fantasma e superar o trauma.
Boas Apostas!